Análise do conto "George", de Maria Judite Carvalho: a liberdade e suas decorrências

Gi, George, Georgina. Assim, com os nomes dispostos exatamente nesta ordem, podemos ver uma ligação entre as três personagens do conto de Maria Judite Carvalho, da obra Seta Despedida, percepção que não temos nas primeiras linhas: Gi-orgi-na. Um nouveau-roman, que me segurou a cada linha, e me fez ir e voltar na narrativa, assim como a personagem principal faz com sua vida: vai e volta, para enfim poder partir. 

Se afirmando como personagem do "novo romance", George sofre um processo de deterioração, perde sua identidade - Gi - e se mascara. Larga (ou perde?) a Gi, na vila onde morou com sua família e seu ex-noivo, mas tem de reencontrá-la, mesmo que de forma efêmera, ao receber sua antiga casa como herança.

Mas George agora é uma estimada pintora, residente - por quanto tempo? - de Amsterdam e não quer o seu passado de volta. E para se livrar dele, definitivamente, vende a casa - símbolo de refúgio para os homens, uma estabilidade que ela não quer. A personagem, além de um pseudônimo - estrangeiro, reafirmando sua máscara social -, mantém apenas malas que "agora são caras, leves, malas de voar, e com rodinhas". Casa? Nem pensar. A velhice mora nelas - e a liberdade passa bem longe -, e talvez, por isto, encontrou com Georgina na residência de seus falecidos pais. 

Georgina, assim como Gi, é uma personagem que não tem traços definidos; mas em contrapartida, seu sorriso nada a ver tem com o da outra: "por que havia de ter? -, são como o dia e a noite". Gi está, aos olhos da sociedade, em seu melhor momento: 18 anos, noiva, com o enxoval pronto. Já Georgina tem quase 70 anos de idade, consciente da proximidade da morte, com dinheiro no banco e sem muita perspectiva de vida. Ao contrário do que George imagina, a velhice, "o único crime sem perdão", irremediavelmente acordou na casa alugada e mobiliada de Georgina. E nada adiantou morar em quartos e apartamentos sem mobília própria, porque a velhice, sem pedir licença, entra pela porta da frente. 

George é uma personagem descentralizada, desertificada, que não se deixa envolver por objetos ou por pessoas que a prenda. A ausência de mobília própria lhe dá a possibilidade de deslocar-se facilmente: "Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes?". Mas por quê? 

Por que George larga Gi, seu noivo, seus pais e seu enxoval na vila? Será George apenas um ser disposto a subverter a sociedade machista portuguesa com um pseudônimo masculino e estrangeiro? Terá tido George amores femininos, por isto largou (ou perdeu?) o noivo português? O que o nome George tem a nos dizer da personagem? Será uma personagem biologicamente mulher, porém com identidade de gênero masculina? Serão, respectivamente, Gi, George e Georgina a pátria antes da guerra, durante a guerra e pós guerra (país desfigurado)? Será, também, a casa um símbolo para a pátria mãe, lugar onde muitos não queriam estar e por isto migravam?

Creio que a resposta seja sim para todas as questões. George viveu em uma época bem mais opressora do que a que vivemos hoje. Seus pais lhe arranjaram um casamento; sua mãe preparou seu enxoval. George largou toda a expectativa que seus genitores descarregavam em cima dela e perdeu-se no mundo. Casou-se, divorciou-se, teve vários amores - que não têm o gênero definido e nem há necessidade. George mantém um pseudônimo masculino e estrangeiro para projetar sua arte. Teria ela tanta notoriedade assinando com um nome português e feminino? Provavelmente não.

George quer liberdade, conquistar o mundo, ser senhora de si. E, para uma mulher, talvez isso signifique solidão. "George" é o grito de "uma voz estrangulada" e está reunido, junto com outros contos de despedidas (de despedir-se ou ser despedida?), na obra "Seta Despedida". O nome da obra nos dá a ideia de algo que vai e não volta ("seta despedida não volta ao arco"), assim como George. Quando volta, obrigada, volta para despedir-se de seu passado (vende a casa e com ela todas as lembranças). Mas, irremediavelmente, encontra também com outro fantasma: seu futuro. Georgina está só, com as mãos trêmulas - o que lhe impede de trabalhar - e lamentando a perda de recordações de seu passado. Georgina, por absoluta falta de escolha - a morte -, tenta se reapropriar do que é seu, em vão.

George é a decisão, Georgina as consequências dela. E Gi? Alguém que se perdeu (de forma proposital ou não) durante esse processo. 

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