Carta aberta à Carolina Maria de Jesus

Dona Carolina, 


Nossas vidas são separadas por quase 100 anos, mas frequentamos os mesmos lugares e nos encontramos nas periferias da literatura. Depois de comemorarmos o seu primeiro centenário, seu povo ainda é escravo do custo de vida. Seguimos sendo rebotalhos, preteridos, o segundo lugar. 


A reparação histórica nunca aconteceu e agora a favela é o quarto de despejo de um vírus que mata pobre. Uma doença se disseminou na Europa e chegou ao Brasil por meio da classe média alta - que rapidamente se curou em hospitais privados, mas não antes de contagiar seus empregados. 


Muita coisa não mudou, mas sua bravura não foi em vão. Hoje seu nome é escrito ao lado de grandes heróis de nosso povo, como o do almirante João Cândido, que foi líder da Revolta da Chibata: ambos foram não só unidos em curta-metragem, como em enredo de escola de samba, a Renascer de Jacarepaguá. 


Atualmente sua imagem é ícone de resistência, é a nossa representatividade resgatada do porão. Foi nas ruas, em busca de papéis descartados que conseguiu sustentar seus três filhos e deu alívio à sua vida sofrida, pois pôde expressar o peso do seu cotidiano miserável. Após muitos anos abafada, sua história foi renascida no papel. Hoje temos suas obras traduzidas em 14 línguas. O diário de uma favelada fez o caminho inverso, cruzou a calunga grande e conquistou territórios até então desconhecidos por você.  


O meu desejo é que você possa voltar em todas as suas reencarnações preta - exatamente como queria! Que descanse. Que volte para nosso ayê cheia de energia. Descendo do orum, vai encontrar um espaço muito familiar: foi inaugurado em São Paulo, o Museu Afro-Brasil, cuja biblioteca leva o seu nome. 


E assim no dia 13 de maio de 2020 nós ainda estaremos lutando contra a escravatura atual - o racismo estrutural. Mas temos o que lugar que você, Abdias do Nascimento, Machado de Assis reservaram para nós. Temos a benção de vocês, nossos ancestrais. 


Com muito carinho e gratidão, 

Mayara Rufino 



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