Apontamentos sobre o processo de branqueamento do carnaval carioca e seus desenredos

"Crioulo cantando samba
Era coisa feia
Esse é negro é vagabundo
Joga ele na cadeia
Hoje o branco tá no samba
Quero ver como é que fica
Todo mundo bate palma
Quando ele toca cuíca"




Marginalizado, o samba é dos pretos e favelados 
Conhecida como reduto do samba, da batucada e do candomblé, a Praça Onze foi palco de personagens como Tia Ciata, Donga e Sinhô. Bem perto dali, nas ruas do bairro Estácio de Sá, Ismael Silva em parceria com outros compositores fundou a Deixa Falar, que inicialmente era bloco, em 12 de agosto de 1928. Logo depois tornou-se escola de samba: recebeu do próprio Ismael o título comparando-a às escolas normalistas do bairro. O novo modelo de fazer samba se popularizou e passou a ser copiado pelo restante da cidade. Assim, Ismael considerava que a Deixa Falar era uma “escola” onde os “professores” ensinavam o “samba de sambar”. 

Como escola, a Deixa Falar pouco se apresentou - apenas nos carnavais de 1929, 1930 e 1931 - não participou do primeiro desfile oficial, em 1932. Porém foi referência para o surgimento de outras agremiações no Rio de Janeiro, inclusive no próprio morro de São Carlos, localidade atual da GRES Estácio de Sá

Por muitos anos, o termo "batuque" definia qualquer manifestação que reunisse canto, dança e uso de instrumentos de origem africana. Em meados do século XIX, a palavra "samba" era comum a representava diferentes tipos de música conduzidas por diversos tipos de batuques, que assumiam características próprias por conta das diversas culturas e povos originários. Apesar da incontestável influência africana, a realidade da atual elite das escolas de samba do Rio de Janeiro está cada vez mais embranquecida. 

De doze escolas no grupo especial, em somente uma o maior representante não é branco.  Renato Thor, presidente da Paraíso do Tuiuti, é uma exceção à regra. Na Série A, grupo de acesso à elite, apenas três escolas são presididas por pretos: Alegria da Zona Sul, Estácio de Sá e Cubango


Cubango continua sendo o quilombo de Niterói 
A herança oral registrou o fato de ter existido um quilombo na região do Morro do Cubango. Um local de liberdade onde as diversas etnias africanas que fugiam após desembarcarem nas praias da região oceânica poderiam manter viva a chama das suas culturas. A Cubango é uma semente que floresceu, se tornou reduto de resistência dessas culturas e que traz no seu nome toda a força da sua herança ancestral.

Entre tantos bairros de Niterói com nomes de origem indígena como Itaipu, Itacoatiara e Ingá, o Cubango destoa e chama a atenção por sua raiz etimológica: o termo é originário de uma região que hoje faz parte de Angola, mas já pertenceu ao Reino do Congo, importante império africano que existiu entre os séculos XIV e XIX. E não foi só o nome da região que eles trouxeram, mas também os costumes e algumas tradições, como o cortejo ao Rei do Congo, que foi inspiração para diversos ritmos no Brasil. E, claro, o Carnaval. 


“Fiz um pedido para brilhar no Carnaval”
O Carnaval se tornou, nas últimas décadas, um grande negócio. A partir da visibilidade, o espaço que era o quilombo e o ritmo que era a voz da liberdade de nossos ancestrais se tornam alegorias para o racismo estrutural e nosso povo perde o protagonismo.

Antônio Candeia, sambista nato e boêmio, foi o idealizador das comissões de frente nas escolas de samba. Seu herdeiro não recebeu apenas seu nome, Antônio Candeia Filho era tão apaixonado pelo samba quanto ele. Cadeia - o filho - foi um cantor, compositor e personagem importante da Portela que criticou abertamente o rumo das escolas de samba, após perceber que os sambistas que as haviam fundado, estavam sendo colocados em segundo plano. 

Quando a narrativa do carnaval muda
A Beija-Flor de Nilópolis foi fundada por um grupo de amigos, entre eles Milton de Oliveira - conhecido como Negão da Cuíca - no município da Baixada Fluminense, região de população majoritariamente preta. Negão da Cuíca foi eleito presidente. A escola é conhecida pelo resgate da força e cultura africana nos carnavais passados. 

Entretanto, seus últimos carnavais são o reflexo do espetacularização do carnaval e tem perdido sua imagem de resistência cultural. Gabriel David, atual comandante da escola azul e branco, não é adepto de enredos afro apesar de saber que os três últimos carnavais da Beija-Flor com essa temática tiveram ótimos resultados. Em 2015, com Guiné, a agremiação foi campeã. Áfricas, em 2007, foi um título histórico e em 2001, com Agotime, garantiu o vice-campeonato em um dos maiores desfiles da era Sambódromo.

“A gente não pode falar o que vai ser, mas podemos falar o que não vai ser. Não vai ser enredo político e não vai ser enredo afro.”, contou Gabriel David em entrevista. 

Como se fosse pouco, Dudu Azevedo, diretor de carnaval da agremiação, questionou a abordagem da Mocidade de Padre Miguel ao falar sobre Elza: “Todo mundo vem com lado afro e a gente acaba caindo no mesmo lugar. Tem histórias lindas para serem contadas. Eu não achei tão interessante contar a história da Elza e ter um lado afro ali, pra quê? Parece que sambista gosta disso, então tem que colocar”.

A questão é: Como contar a história de Elza sem falar de sua negritude e de sua fé? Candeia dedicou sua curta vida para denunciar o que os novos representantes estavam fazendo com o samba e hoje, 42 anos depois, vemos uma agremiação que se orgulhava de ter a “alma africana” dar poder à branquitude que quer lucrar apagando nossa história. Quando o preto perde o protagonismo dentro das escolas de samba, a narrativa muda e reflete em todos os setores da escola. Quantas musas e rainhas de bateria que vieram da comunidade temos desfilando hoje? 

Analisando trajetórias como da própria Beija-Flor, que em 2019 amargou um 11º lugar; da Unidos da Tijuca que escapou diversas vezes do rebaixamento por motivos escusos, do Império Serrano e da Imperatriz Leopoldinense, podemos perceber que escolas tradicionais têm sido rebaixadas por conta da incapacidade de seus gestores em construir uma visão crítica e entender que Carnaval não é uma festa e sim uma manifestação cultural.

Respeita o nosso axé! 
Atualmente a Grande Rio é o maior exemplo de que carnaval é o resgate de nossa identidade. Após afastar-se do povo caxiense nos últimos carnavais fazendo samba para artista global brincar, a agremiação de Caxias reencontrou com suas raízes revivendo Joãozinho da Goméia como enredo em 2020. 

A escola olhou para si e promoveu valorização do que conhecemos como “chão” e comunidade: Além de contar a história do famoso pai de santo de Caxias; o intérprete, Evandro Malandro; o mestre de bateria, Fafá e a primeira porta-bandeira, Taciana Couto foram aquisições do próprio quintal. 

O olhar para o nosso passado e para o legado de um líder preto, homossexual e nordestino, bailarino que ousou dançar com o poder instituído e enfrentou, queixo alto e voz potente, as navalhas do preconceito. A comunidade de Caxias se vestiu para o xirê e, aguerrida, galgou um vice campeonato concorridíssimo. 

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